Como tem sido tratada a questão da gordofobia e direito à dignidade no Brasil? Como cobrar saúde de uma pessoa gorda se as estruturas hospitalares não estão equipadas para atender esses corpos? Devido ao discurso que associa peso a doença, esse grupo ainda sofre com falta de acessibilidade e negação de direitos. E fica o questionamento: como situações de gordofobia podem ser tratadas de forma jurídica?
Gorda na Lei
De acordo com a advogada Rayane Souza, do projeto Gorda na Lei, é notório o aumento de ações judiciais que denunciam a gordofobia. “A maior presença do assunto na mídia e a força das ativistas têm dado visibilidade a essa questão, e encorajado pessoas gordas a buscar seus direitos”.
Criado em 2019, o Gorda na Lei é um projeto ativista voluntário que tem compartilhado informação acessível sobre direito à dignidade e legislações. Comandado por Rayane Souza (formada em Direito com pós-graduação em Direito Digital) e Mariana Vieira (Advogada e membro da Comissão de Direitos Sociais da OAB-ES), a iniciativa tem desenvolvido um importante papel também no acolhimento de vítimas de gordofobia.
“Quando a gente insiste em discutir gordofobia dentro das esferas jurídicas, é isso que faz as pessoas acreditarem que há uma saída. Que há uma maneira de combater esse preconceito”, conta.
Leis antigordofobia
“Hoje no Brasil temos apenas uma norma efetiva, a Lei 18.832/2021, em vigência em Recife (PE), que assegura às pessoas gordas carteiras escolares adequadas nas instituições de ensino básico e superior da cidade”, aponta Rayane.
Em pesquisa nos portais do Senado Federal e da Câmara Federal, há mais de 15 resultados de iniciativas legislativas que buscam criminalizar ou instituir um dia nacional de combate ao preconceito contra pessoas gordas. Dentre elas está o projeto de lei 1786/22, de autoria do deputado federal José Guimarães (PT-CE), que estabelece a discriminação ou preconceito em razão do peso corporal. A proposta foi apresentada ao plenário em 28/06/2022 e sua tramitação está paralisada.
A especialista em Direito Digital acredita que estamos no caminho para avançar na aprovação de legislações que assegurem respeito e mudança em políticas públicas. “Projetos de lei já existem, mas a luta é para que o Legislativo seja motivado a concretizá-las. Estamos no processo”, comenta.
Ativismo na luta
No início de janeiro, o paulistano Vitor Augusto Marcos de Oliveira, 25, foi uma das vítimas fatais da falta de assistência médica digna. O jovem teve o atendimento negado em seis hospitais por falta de mobiliário que sustentasse o seu peso. A ocorrência colocou mais uma vez em evidência a falta de acessos e a negação de direitos que pessoas com corpos fora do padrão passam diariamente.
A jornalista e professora doutora em Comunicação Agnes Arruda analisa que a abordagem do caso na mídia foi violenta. “Para além de reportar o caso, também cabe ao jornalismo investigar os fatos e apresentar ao público uma perspectiva crítica a respeito dos acontecimentos, o que não ocorreu. Na semana da morte do Vitor, só o que se falava nos jornais era de cirurgia bariátrica e outros métodos de emagrecimento. Isso é colocar na vítima a culpa pela violência que ela sofreu”, observa a pesquisadora.
“Na semana da morte do Vitor, só o que se falava nos jornais era de cirurgia bariátrica e outros métodos de emagrecimento. Isso é colocar na vítima a culpa pela violência que ela sofreu.”
Em solidariedade à família, as ativistas Vanessa Joda e Ellen Valias realizaram uma caminhada em São Paulo no dia 15 de janeiro na Avenida Paulista para cobrar justiça. O ato contou inclusive com presença de Andreia Marcos da Silva, mãe de Vitor.

“O ato foi muito forte. Primeiramente porque a Andreia nos mostrou o quanto o nosso movimento ainda precisa chegar nos lugares. Ela fez isso nos dando a mão, nos acolhendo, mesmo sofrendo o luto pela morte do seu filho. Segundo porque é uma dor que todas nós conhecemos, então mexe demais, mas foi muito importante estar lá”, comenta Agnes, que esteve presente na caminhada.
Para Vanessa Joda, professora de yoga e ativista, a realização da mobilização foi muito importante. “O caso do Vitor é inadmissível, além do mais, porque não é um caso isolado e ainda tem um recorte social. Se tivesse acontecido com uma pessoa rica e branca teria tido mais visibilidade, mas como aconteceu com uma pessoa preta e periférica, foi ainda mais violento. Por esses e tantos outros motivos foi tão importante ir às ruas”, avalia Vanessa.
A ativista destaca ainda que a luta continua. “Não vamos esquecer do que aconteceu. Vamos continuar lutando por justiça antigordofobia e cobrando apoio em todas as instâncias até a pauta ser devidamente ouvida pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania”.
Gordofobia nos transportes
Outra ocorrência recente que impactou a comunidade foi vivida pela modelo plus size Juliana Nehme. Depois de planejar uma viagem ao Líbano por mais de 5 anos, a paulistana teve seu retorno impedido pela companhia aérea Qatar Airways, que exigiu a compra de outra passagem por conta de seu peso. Juliana viveu horas de terror até a Embaixada brasileira intervir e garantir sua volta.
“Eu não sabia que podia acionar a justiça quando aconteceu o caso. A última coisa que pensei, com tudo que passei, foi nisso”, relata a modelo.
“Quando os advogados entraram em contato comigo se oferecendo para me ajudar, a única coisa que eu queria era alguém que mostrasse para a Qatar que eu tinha direito de embarcar com a passagem que comprei e pudesse finalmente voltar para minha casa. Foram esses próprios advogados que orientaram que o abuso que sofri era passível de um processo e foi aí que resolvi aceitar o conselho jurídico deles”, completa Juliana.
O que fazer em casos de gordofobia?
Apesar da falta de uma legislação nacional, situações de preconceito, como a vivida por Juliana e por Vitor, podem ser enquadradas legalmente como: injúria, assédio moral e até violência psicológica.
“Mesmo que a gordofobia seja enquadrada em outras tipificações, é de extrema importância que a vítima nunca deixe de relatar. Em casos ocorridos no ambiente médico existem alguns mecanismos de defesa, como a gravação de consultas (entendimento respaldado pelo Superior Tribunal Judicial) e as denúncias aos Conselhos de Medicina. O ideal é que se procure um advogado para encontrar o melhor caminho em cada caso”, explica Rayane do Gorda na Lei.
A modelo Juliana acredita que é imprescindível tratar a questão da gordofobia e direito à dignidade no Brasil. “Acho de fundamental importância acionar o sistema judiciário em casos como o meu. Nenhum dinheiro do mundo vai conseguir mudar o que aconteceu. Antes de mais nada, essa é uma ferida que vai ficar comigo pro resto da vida. Principalmente a humilhação e julgamento indevidos que passei. No entanto, é somente assim que as empresas podem mudar sua visão e atitude com relação às pessoas gordas”, diz Nehme.
Um guia para te ajudar
Enquanto a violência a corpos fora do padrão segue normalizada e invisibilizada, torna-se primordial saber como enfrentar esse tipo de situação, por isso, preparamos um pequeno guia com alguns pontos importantes para seguir:
- Busque conhecimento: Saber o que é gordofobia é o primeiro passo para poder confrontar esse tipo de violência. Entenda que você tem direito de ocupar os espaços e ninguém pode negar isso!
- Acione sua rede de apoio: Acolhimento é fundamental em todas as horas! Busque cercar-se de aliados antigordofobia! Canais como a Comunidade Pop Plus no Facebook e o Gorda na Lei também podem ajudar e dar suporte.
- Não tenha medo de denunciar: Você merece atendimento digno e que seus direitos sejam respeitados. Em qualquer ação contrária a isso, notifique os canais de Ouvidoria e até mesmo a Defensoria Pública.
- Não desista da luta: Acima de tudo, a luta contra a gordofobia precisa avançar. Enquanto não houver uma lei que criminalize o preconceito contra pessoas gordas, a violência e a negação de direitos vai continuar. Seu apoio nessa luta é fundamental!
Foto de destaque: Erick Fernandes
