Eu preciso que me desculpe. Durante todos esses anos eu te fiz muito mal e algumas vezes eu fui cruel demais.
Aqueles dias que eu te deixei no quarto por tristeza ou mesmo por fraqueza para enfrentar as pessoas, eu peço perdão. Quantas festas você perdeu, quantas viagens e passeios com amigos eu te segurei pra não ir e com isso te poupar dos olhares, das piadas, das comparações… Sim eu também te comparei anos e anos com outras meninas, com outros corpos e assistia as lágrimas molharem teu rosto e eu achando pouco. O mesmo rosto sempre tão elogiado, aquele rostinho considerado tão bonito mas sempre visto como parte desse corpo inapropriado e preguiçoso. Quantas vezes eu pensei e fiz você acreditar que era feia, incapaz, desleixada e ainda por cima te cobri de todas as culpas do mundo.
Eu te sentia uma fraca.
“Você não tem um pingo de força de vontade.”
“Cada dia mais gorda. Tá enorme. Olha o tamanho da tua barriga.”
“Todo mundo tem razão. Você não faz nada pra mudar. Desisto de você.”
Quanto eu repeti essas frases te olhando nos olhos, brigando contigo, te mal dizendo na frente do espelho.
Como eu te culpei, meu Deus.
Lembra das inúmeras vezes que na praia eu te deixei sentada de shorts e camiseta? Dias lindos de céu azul, sol e você tentando se esconder de tanto que eu coloquei na sua cabeça que gordas só podem ir à praia de roupa. Na verdade eu sempre te falei que você não gostava de sol, de mar, de piscina. Foi o jeito que eu encontrei de te fazer desistir de qualquer lugar ou estação em que seu corpo ficasse mais à mostra.
Seus braços eu fiz questão de cobrir por anos, àqueles que podem abraçar, afagar e ser ninho e porto seguro pra alguém. Esses mesmos braços que podem carregar um bebê, auxiliar um idoso, alimentar pessoas, braços fortes para o trabalho, braços leves para o carinho e que eu também te fiz odiar.
Quando você se apaixonou pela primeira vez eu tentei te abrir os olhos e você não me ouviu. Eu falei que o amor não era pra você e que nunca iriam te cortejar, mandar flores, que o romantismo não chega nas mulheres gordas. Eu criei na sua cabeça uma insegurança do tamanho do universo e ela te fez frágil, vulnerável, carente, arredia, e muitas vezes sozinha.
Os momentos em que eu te vi feliz numa relação tratei de te convencer que seus corpo nu não seria desejado, não daria prazer à ninguém porque era feio, cheio de marcas, flácido. Eu te induzi a ter vergonha de ser você.
Como eu pude te olhar com tanta raiva e deprezo? Como eu consegui que carregasse o fardo de tantas e tantas vezes se odiar, se maltratar?
Te forcei à uma vida pela metade, cheia de medos, de ansiedade, de se contentar com o que tinha, de nunca escolher, das luzes sempre apagadas, da obrigação em agradar. Eu te obriguei à simpatia infinita, à nunca dizer não, à não responder à ofensas e críticas afinal era só “brincadeira” ou “preocupação com a sua saúde”.
Você engoliu à seco negligência médica, relacionamentos abusivos, fiscais do corpo alheio, os dedicados amigos e familiares que falavam o tempo todo do seu corpo, do seu peso e do quanto você era negligente consigo mesma.
Então eu parti para a tentativa de resolver seus problemas de uma vez por todas e tentei te emagrecer. Era sua chance de ser feliz, de ser amada, de não ter vergonha do próprio corpo, de engravidar em paz, de comprar e poder usar todas as roupas que tivesse vontade, de ser bem tratada afinal sendo magra você conquistaria todos esses direitos. Um corpo magro era seu passaporte pra felicidade. Fizemos de tudo, você se lembra? Claro que lembra.
Você ficou doente, compulsiva e depressiva, teve desmaios, o coração ficava acelerado, o medo de fracassar tomava conta e assim você viveu durante muitos anos. Tantas tentativas com erros e acertos. Dava certo e você recebia mil elogios, se animava toda e quando deixava de comer sua sopa milagrosa engordava de novo e vinham as críticas, as falas tão desmedidas e carregadas de preconceito e crueldade. Gastava tudo com remédios e fórmulas mirabolantes, e não sabia mais se controlar. Quando finalmente eu conseguia te “levantar do sofá”, você vinha com alguma desculpa. Caramba, era tão “fácil” emagrecer, todo mundo conseguia, só a senhorita é que não se esforçava. Sempre te achei fracassada por não conseguir ou por ficar sempre indo e voltando… Eu procurava aqueles Antes e Depois e fazia questão de esfregar na sua cara para que ficasse bem claro que era a culpada e que não tinha foco, força e muito menos fé.
Perdão.
Por favor me desculpa por ter te menosprezado tanto mas principalmente por não ver em você a beleza que consigo enxergar hoje.
Desculpa se te ofendi nos momentos de crise e extrema tristeza. Sei bem que te maltratei com minhas críticas ofensivas e muitas vezes te empurrei para o fundo do poço.
Peço que me perdoe por cada pensamento ruim ou derrotista, pelos medos e pela depressão vivida com tanta intensidade.
Hoje fui atras de encontrar suas qualidades e enxergar a beleza que há além de todo padrão. Depois de ouvir o mundo e fechar os ouvidos para o seu coração, eu quero te acolher.
Eu te amo tanto e demorei anos pra descobrir esse amor.
Foi muito tempo para entender convenções e perceber que o gosto me foi imposto. A verdade é qué sempre gostei de você mas me ensinaram que você representava o erro, a ausência da beleza, a falta de cuidado e o caminho para não pertencer.
Eu preciso zerar todas as nossas desavenças, acabar com tanta cobrança e culpa. Parar de medir sua vida com o centímetro dos outros.
Ainda bem que onde há amor vai sempre existir perdão e você é puro amor.
Desculpa, me deixei levar pelo mundo lá fora quando havia um mundo ai dentro e o que eu deveria cuidar. Nesse teu universo particular habita uma pessoa cheia de qualidades e cheia de beleza, a a mais genuína delas , a sua. Aí dentro mora uma mulher com direito ao amor, ao prazer, ao gozo, à alegria, a dançar na chuva, ao riso frouxo, ao sorriso largo, a sonhar, realizar e a ser liberta.
Bandeira branca.
É uma trégua. Eu quero ficar perto de você porque só juntos é possível cuidar da mente, do corpo e do espírito e enfim celebrar a chance da vida vivendo.
Pra sempre seu,
Amor próprio
Conheça mais sobre Drika Lucena em entrevista no site do Pop Plus
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(*) Drika Lucena é santista e professora universitária nas áreas de História da Arte, Estética, Produção de Arte, Criatividade, Tendências em Moda, Escrita Criativa e Estudos da Sociedade Contemporânea. Publicitária, Artística Plástica, especialista em Criação Visual e Multimídia, atuou como Redatora Publicitária e diretora de arte e desde sempre respira vive a paixão pela docência. Estudiosa da Cultura Brasileira, Cultura Popular, Criação e Inovação, ministra palestras, workshop, oficinas e mentorias. Drika fala de autoestima, autocuidado, sexualidade, dores e amores, vida e transformações da mulher real. Seu instagram é o @_drika_lucena
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